Eu tenho saudade da minha infância. Sou capaz de sentir o cheiro do meu cabelo na minha cabeça suada, antes do banho. Uma mistura de terra e grama que tingia a água na banheira. Era comum tomarmos banho na banheira, todos juntos, meus irmãos e eu. Ali a gente brincava de escorregar, de entregador de leite (água com sabonete derretido num copo de vidro que a gente pegava escondido) como se não pudéssemos esgotar a nossa capacidade de criar, de fantasiar, de inventar brincadeiras.
-Leiteiroooo!!!
E a gente fingia que comprava o leite e passava o copo de mão em mão.
Infância antigamente era um negócio arriscado. Somos sobreviventes felizes!
E foi assim que o meu irmão foi parar no hospital, com um corte enorme no calcanhar.
Previsível.
O que não prevíamos era que ele seria levado de charrete, o pé enrolado numa toalha, sangrando. Não combinava com o sorriso enorme de satisfação e quase que de soberba:
-Vou andar de charrete, vocês não!
Quando ele virou a esquina deu aquela inveja, aquela vontade de ser socorrido também na charrete do seu Luís.
O único problema era contar para a mãe da gente que alguém tinha se machucado. A bronca era garantida e severa. Justificável porque tudo era difícil: curativo, remédio, médico… E um corte daquele, profundo, não adiantava remédio caseiro. Machucado caro.
Hoje eu queria essa charrete, como um tapete mágico, uma carruagem encantada para me levar de volta para a minha rua sem asfalto, para eu ouvir o casco do cavalo batendo no chão de terra e ver subir a poeira nos meus olhos e justificar essas lágrimas.
-Molecada, o café tá na mesa!!!
-A gente já tá indo, Beth!
-Quem vai contar pra mamãe?
-Quem vai coar o meu leite?
Você teve quem coasse o seu?
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